«Falta-me fazer tudo!»
ANAÍSA RAQUEL. Assume-se como curiosa e confessa que chegou ao teatro por querer fazer tudo. Atenta ao que a rodeia, a atriz é pioneira no trabalho de audiodescrição de espetáculos, exposições e galas, assim como na criação de peças de teatro aéreo como a que o ano passado estreou no CCB. Enquanto pede dias com mais horas e apesar de já ter feito muita coisa, diz que ainda lhe falta fazer tudo.
O que é que andas a fazer?
Neste momento, enquanto atriz, estou à espera que um ou dois projetos avancem. Tenho-os em vista, mas só para o final do ano. Por enquanto não é nada certo, mas a acontecer não será em Lisboa. Poderão acontecer em cidades do centro do país e serão espetáculos diferentes que hão-de trabalhar a história das cidades. Mas neste momento ainda é precoce falar. Além disso, ando a ler muitos textos e a fazer algumas leituras com colegas para ver o que podemos fazer num futuro próximo.
E no ano passado, ainda enquanto atriz, o que fizeste?
Terminei o meu projeto de Mestrado e fiz um espetáculo que visava conjugar o teatro com as artes cénicas de circo. Tratou-se de um espetáculo que encenei e no qual participei. Chamava-se Um Sonho e era baseado em duas obras de Strinberg - O Sonho e O Inferno - e era um espetáculo de teatro em que as cenas se passavam sempre em cinco aparelhos aéreos. Tínhamos um trapézio, dois tecidos verticais, uma rede e uma escada de corda. No espetáculo, os habitats das personagens eram sempre lá em cima. Conseguimos fazê-lo no CCB, no espaço da Escola de Mulheres e num teatro em Ponte de Lima.
E como é que correu essa experiência?
Foi muito bem recebido pelo público pelo facto de ser diferente, por não existir este tipo de teatro em Portugal, mas foi também muito complicado, porque em Portugal os teatros têm muito medo dos aparelhos que são colocados nas vigas onde são pendurados os aparelhos de iluminação. Por isso é que a digressão foi tão curta. Mas para mim, que queria experimentar esta linguagem nova que é pouco comum em Portugal, foi muito interessante e super enriquecedor.
Essa é uma linguagem que tens vindo a explorar ao longo dos últimos anos.
Há quem me pergunte se andei no Chapitô e se foi lá que aprendi os aéreos, mas a verdade é que toda a minha vida foi conduzida através do teatro. Todas as minhas atividades fora a atividade de atriz têm origem no teatro. Houve um espetáculo, há uns anos, em que eu precisava de estar suspensa no ar e na altura lembro-me que a uns dias da estreia perguntei ao encenador "então, mas como é que eu desço para a cena seguinte, cá em baixo?" e ele disse-me para não me preocupar que dois contrarregras me iam ajudar a descer. E eu fiquei meio em pânico e decidi que não ia depender de ninguém e acabei por ter umas aulas com os Intrépida Trupe que estavam cá em Portugal e depois fui fazer o espetáculo e a partir daí ficou o gostinho. Até que depois fui empurrada para começar a dar aulas e sempre gostei de conciliar tudo. Eu acho que a arte é universal e não precisamos de catalogar o teatro de comédia, o teatro comercial, o teatro de drama, o teatro de tragédia, o circo... Podemos sempre conjugar as coisas e a minha ideia sempre foi conjugar as artes. E não quero com isto dizer que acho que se deva fazer aquele teatro aéreo que conta com um acrobata que chega lá, faz uma coreografia e sai. Não me identifico com isso, acho que se deve mesmo conjugar as coisas. Se é para ser teatro aéreo, então, o ator que está lá em cima, vai ter de dizer o texto de lá de cima.
Disseste que não querias e que não gostas de catalogar, mas vamos dividir-te um bocadinho. Já aqui falámos de ti enquanto atriz-acrobata, agora fala-nos de ti enquanto atriz que já teve algumas experiencias de micro-teatro.
É maravilhoso! É maravilhoso por dois motivos. Um é o facto de existirem apenas 15 minutos para contar uma história completa, não há tempo para encher chouriços, nunca há uma cena que tu não gostes, porque é tudo muito rápido. É muito complicado ter só 15 minutos para fazer a curva dramática de uma personagem, por isso é que é muito enriquecedor. Para mim, enquanto atriz, isso é o melhor do micro-teatro - é preciso ser muito rápida. Depois, por norma, os sítios onde este género de teatro acontece, são sítios em que o público está, normalmente, em cima de nós e isso é ótimo! Eu não gosto que existam barreiras entre o interprete e o público e sempre gostei que isso não existisse no micro-teatro. Quando estamos ali, o público está colado ao nosso olhar, por isso, o ator tem de acreditar, tem de estar mesmo a viver aquela personagem, porque se não , não consegue transmitir a emoção. Por isso é que eu acho que é um género tão interessante. Eu gosto desta ligação com o público, gosto quando me pedem para quebrar barreiras, em que me pedem para lidar com o público, sentar-me ao colo do público, quase brincar com o público... eu adoro isso! É das formas de teatro que mais gosto de trabalhar, confesso.
Ainda catalogando, e olhando para o teu percurso, já fizeste teatro infantil. Como é que foi a experiência?
Difícil!!! (risos)
Porquê?
Teatro para a infância é difícil por dois motivos: primeiro porque temos à nossa frente o público mais sincero e que não filtra o que diz, e depois porque é de manhã e obriga o ator a acordar muito cedo e eu odeio acordar cedo!
Muitos atores se queixam da questão do horário a que o teatro infantil é feito.
Claro que sim! É que a voz, às 9h30 da manhã não está acordada! (risos) Mas pronto, se tivesse de fazer, fazia. Só não gosto muito do teatro que trata a criança como se tivesse uma grande necessidade de explicar tudo. Eu acredito que todo o ser-humano é inteligente e, por isso, gosto dos espetáculos para a infância que, de alguma forma, os deixam a pensar e lhes aguça a curiosidade. Mas é uma área pela qual é importante passar enquanto ator, para aprendermos e crescermos. Se o público não gosta, diz na hora. Houve uma vez que, logo no início do meu percurso, fazia de rapaz num espetáculo em que o público estava bastante perto. Então, um dia, no final do espetáculo, um miúdo veio ter comigo com a mão bastante aberta e apalpou-me as mamas a dizer "eu sabia que tu não eras um rapaz!". Ele ficou o espetáculo todo a tentar perceber se eu era um rapaz ou uma rapariga. É engraçado porque os miúdos pegam num determinado aspeto e vão até ao final para o tentar perceber.
E o que é que fizeste nessa situação?
Eu olhei para ele, olhei para a mão dele, vi que não havia qualquer maldade e então depois expliquei-lhe que não era um rapaz, que era uma atriz e que às vezes tinha de fingir ser um rapaz. E ele disse que sabia e que queria só ter a certeza.
Entretanto, também já tiveste algumas experiências fora do palco, mas sempre ligadas ao teatro.
Sim... Já fiz assistência de produção, assistência de encenação e direção de cena. A verdade é que, para mim, qualquer cargo que envolva trabalhar na área do espetáculo é uma aprendizagem e é por isso que os aceito, não é só pela questão da remuneração. Fazer direção de cena ou assistência de encenação ou assistência de produção e perceber que existem grandes artistas com muito talento, com muita experiência, como muito reconhecimento por parte do público, mas que têm as mesmas fragilidades, as mesmas necessidades, as mesmas dúvidas e as mesmas questões que eu enquanto atriz... É uma grande aprendizagem e colocam-me no lado do que é mais importante, que é a humildade. Apesar de sermos tratados por todos como iguais, não deixamos de estar a fazer um cargo considerado menor e que não é alvo do aplauso do público no final do espetáculo, mas, ainda assim, pertencemos à equipa e tudo o que fazemos é para ajudar ao espetáculo. Por isso, aprendemos coisas como as dúvidas dos grandes encenadores para resolver uma cena que pode ser mínima e que depois, quando passamos para o outro lado, como me aconteceu quando estive a encenar o Um Sonho, lembrava-me imensas vezes das aprendizagens que tive com pessoas como o José Pedro Gomes, o Fernando Gomes, o Henrique Dias... Lembro-me sempre dos dias em que posso estar, simplesmente, a anotar as indicações, mas que estou também a aprender, ao ver grandes nomes resolver questões. Por isso é que espero nunca deixar de fazer esse trabalho atrás do pano.
É por essa entrega ao teatro que decidiste dedicar-te, também, à audiodescreição? Achas que o teatro tem de estar acessível a todos?
Foi em nome dos direitos do público que eu decidi apostar na audiodescrição. Para mim é muito complicado pensar em como é que não se trabalhou mais cedo para dar uma acessibilidade igualitária a todo o público. E o público é feito de pessoas e as pessoas têm dores nas costas, deficiência visual, têm dores nas pernas, andam de cadeiras de rodas... As pessoas são pessoas e eu não percebo como é que se fazem espetáculos sem pensar em algumas parcelas da sociedade. Foi por isso que, há quase 10 anos estudei a audiodescrição e tenho vindo a implementá-la em museus e em teatros. É-me muito importante que qualquer pessoa possa ir assistir a um espetáculo e formar a sua opinião.
Tens retorno desse trabalho?
Imenso, imenso. Tenho pessoas com deficiência visual que me dizem que gostaram imenso de uma determinada cena. E depois vamos ver e aquela cena era uma em que não existia qualquer efeito sonoro ou voz. Sem audiodescrição, há cenas que nunca chegariam a pessoas com deficiência visual.
Para quem não sabe o que é a audiodescrição, como é que a descreves?
A audiodescrição é uma tradução intersemiótica. Nós traduzimos por palavras tudo o que é visível e que não é transmitido nem pela sonoplastia nem pelas falas das personagens. É isso que é a audiodescrição. Para quem não percebe, mesmo assim, eu convido essas pessoas a fecharem os olhos durante um bocadinho de uma telenovela e vão perceber que há cenas que precisam dessa tradução da imagem. Temos de perceber que há coisas que se perdem por estarmos num meio muito visual. Certamente que toda a gente se lembra do genérico da série Friends. Todos se lembram do sofá que está numa praça à frente de um chafariz, certo? Mas isso nunca foi passado por palavras. Ora, as pessoas com deficiência visual que nunca tiveram ninguém que lhes explicasse o que é que era o genérico, não sabem que os atores fizeram cenas em que estavam dentro de uma fonte, numa praça central de uma cidade, a molharem-se e que isso ilustra desde logo o quão divertidas são as personagens. E, na verdade, isso ajuda-nos a criar uma opinião sobre as personagens e sobre a série. Uma opinião que quem tem deficiência visual também deve poder criar.
Esse, para ti, é o caminho a seguir?
Sem dúvida nenhuma que o caminho é a acessibilidade da arte.
E os promotores de espetáculos estão a ficar sensibilizados para esse caminho?
Desde há dois anos a esta parte que estão cada vez mais sensibilizados. Eu já estou a fazer audiodescrição no Teatro Nacional São João, no Teatro São Luiz, no Teatro Dona Maria II, já fiz para inúmeros museus em Portugal, a própria EGEAC já anda a pedir informação sobre a audiodescrição para os seus museus, eu já fiz a audiodescrição das Marchas Populares para a RTP, no ano passado, pela primeira vez... Portanto, desde há dois anos que eu diria que acordaram.
Acordaram um bocadinho tarde, na tua opinião?
Estamos a falar de Portugal, o que é que é tarde? Se formos a ver, com rigor, a língua gestual também só foi inserida de uma forma regular e legislada na televisão há três anos mais ou menos. Portugal tem um caminho muito longo a fazer em muitas coisas, mas na verdade não acho que estejamos assim tão atrasados, o ano passado fiz audiodescrição em cinco museus e em oito espetáculos de teatro, por isso, não diria que estamos assim tão atrasados. Temos de ter fé, paciência, temos de batalhar e trabalhar muito. Finalmente acho que as coisas estão a entrar no eixo. Agora temos uma Secretária de Estado para a Inclusão que, a meu ver, defende muito bem o que a Secretaria de Estado pretende. Acho que agora as condições estão reunidas, mas, até então, acho que não estavam.
Face a isto, o que é que ainda te falta fazer?
Tudo! (risos) Falta-me fazer tudo. Falta-me fazer muito mais teatro, muito mais teatro aéreo, falta-me audiodescrever muito mais coisas, falta-me viajar imenso, falta-me ser muito mais feliz, conhecer muito mais pessoas... Falta-me tanta coisa. Eu, às vezes, acho que 12 horas, que é aquele tempo que consideramos útil, não chegam, é muito pouco para tudo o que me falta fazer. Sou relativamente nova, mas eu acordo a achar que já estou atrasada, pareço o coelho da Alice (no País das Maravilhas), estou sempre atrasada para aprender, estou sempre atrasada para fazer mais, sempre atrasada para tudo... Falta-me fazer tudo!
Quem é a Anaísa Raquel?
Hmm... (pensa) Muita gente me faz essa pergunta, até no meu círculo de amigos. Na verdade eu acho que não sei ainda muito bem quem é a Anaísa Raquel, porque ela quer ser muita coisa.
É por isso que é atriz?
Sim, sem sombra de dúvida. Eu sou atriz porque em criança não me conseguia decidir: eu queria ser advogada, professora, juíza, comerciante, queria ser e fazer tudo. Até que vi a primeira peça de teatro na escola primária e pensei "ah, é isto mesmo, eles conseguem ser tudo!", então decidi que queria ser atriz. Há pessoas que acham que é pelo facto de uma pessoa ser desfocada, mas eu não acho nada disso. Acho que uma pessoa deve sonhar e que para sonhar não há limites, uma pessoa pode ser tudo... E por isso é que sou atriz. Não sei, eu quero ser tudo e às vezes não sou nada... Às vezes gosto de não ser nada! Não sei... acho que acima de tudo sou curiosa.
Agradecimentos: Village Underground Lisboa
Este texto foi escrito ao abrigo do novo Acordo Ortográfico